Entrevista do Sam The Kid ao Nação Hip Hop (com Rui Miguel Abreu)

Isto é um excerto da entrevista do Sam The Kid no programa (já extinto) Nação Hip Hop na Antena 3 com o Rui Miguel Abreu, em que estão a discutir a polémica em torno da música “Poetas de Karaoke”.

RMA: Ora, vamos então ao Poetas de Karaoke. Cumpriste a tua decisão apesar de o disco, ou do tema, como tu dizes, já estar disponível na Net há algum tempo, uma fuga de informação que aconteceu, mas tu fazias questão mesmo que este fosse a apresentação do álbum. Qual é a mensagem… a mensagem principal, a minha impressão é que está a ser mal lida por toda a gente, não é?
STK: Pois está, pois está. E as pessoas estão a pegar apenas num dos lados que a música ataca, ‘tás a ver? A música ataca, pá, “Poetas de Karaoke” não é só os gajos que cantam em inglês. Para que é que as pessoas estão a ignorar o primeiro verso? No primeiro verso eu estou a falar para dentro, mas isso, já estamos tão habituados a ouvir isso, falar mal dos rappers, uns dos outros, «e hoje em dia há tantos rappers, que hoje nem todos batem», é o que eu ‘tou a dizer com a primeira linha, não sei quê, ‘tou-me a dirigir pa’ dentro, mas quando nós nos dirigimos pa’ dentro, o resto das pessoas: «ah deixa-os matarem-se uns aos outros, eles já estão habituados», e quando eu falo pra fora já é uma cena: «oh cuidado! Fala lá pra vocês mas aqui para nós do Rock não falas», ‘tás a ver? Já se sentem muito picados, e chamo-lhes a atenção, ‘tás a ver? E aí que é que depois eu tenho o pessoal do Hip Hop do meu lado, porque percebe o que eu ‘tou a falar… E atenção, que eu não falo só disso, man. Por exemplo, eu falo dos playbacks, man. ‘Tás a ver? E às vezes pode haver um gajo que canta em inglês e não faz playbacks, mas também às vezes coincide, há gajos que cantam em inglês e fazem playbacks, são coisas com que eu não me identifico, na música, como consumidor também! Não gosto de ver um artista que eu gosto a fazer playback, ou gostava de ver certos músicos que cantam em inglês a cantar em português, é uma opinião, man, não posso ter uma opinião?...
RMA: Podes ter uma opinião.
STK: Pá, e depois…
RMA: Não só podes como deves.
STK: Depois vieram certos… os fãs de Moonspell que interpretaram as músicas, ah, a letra… uma pessoa dá o exemplo de Moonspell como alguém que se safou, que se internalizou… Porque, se ouvirem a letra, man, eu ‘tou a dizer, é mais pra aqueles bacanos, que eu digo «querem ser internacionais mas estão cá no país», é mais para essas pessoas que estão cá no país. E ‘tão…
RMA: Sim, porque os Moonspell construíram a carreira deles de fora para dentro.
STK: Sim, man. ‘Tás a ver? É o que eu ‘tou a dizer. Eles são um bom exemplo dessas pessoas que cantam em inglês e ‘tão lá fora. Mas o que eu quero dizer é que se eu me internacionalizasse, seria como um exemplo português, como é Madredeus e Dulce Pontes, man. Eu não posso ter esse exemplo?! Eu posso ter esse exemplo!
RMA: Claro que podes.
STK: Porque é que eu tenho que ter o exemplo dos Moonspell? Essa é apenas a minha opinião. Os Moonspell já todos picados e não sei quê… O rapaz, o Fernando, veio dizer… «nós já fizemos mais pela música, por Portugal, que todo o Hip Hop», ‘tás a ver?
RMA: … pela cultura portuguesa…
STK: ‘Tás a ver? Ele com isso, ele desceu muito baixo, ‘tás a ver, porque eu sou o Samuel, eu não sou o Hip Hop, ‘tás a ver? Até o Valete fez um texto sobre isso, e fez bem. E… ‘tás a ver, ele ‘tá a descer baixo. Eu não tou a dizer “o Heavy Metal”, eu não tou a dizer nada disso, eu ‘tou a dizer… disse “Moonspell” e nem ‘tou a dizer mal! E ele: «ah nós fizemos mais por Portugal, nós metemos alemães a aprender a falar, ah, a querer saber falar português». E eu pergunto assim: desde quando é que fazeres um alemão falar português é mais valioso do que eu fazer um português ir ao dicionário ou um português descobrir, procurar um CD do Carlos do Carmo que eu samplei, ‘tás a ver?
RMA: Claro.
STK: É pá, não curto nada essa desculpa do…
RMA: Mas tu estavas à espera que isto acontecesse, e fosse, fosse… ah, que criasse uma polémica desta natureza?
STK: Eu não ‘tava nada à espera! Ainda no Sábado abri o Correio da Manhã, mais uma grande cena: “Polémica: Em Português nos Desentendemos”. Eu, o José Pedro e o Pacman com uma bandeira de Portugal atrás e os Moonspell, e os The Gift, e os Blind Zero com uma bandeira inglesa atrás, e opiniões divergentes. Pá, a minha cena… O meu objectivo, quer dizer, não foi ir assim tão longe. Mas já que estão a dar esta importância, ainda bem, ‘tás a ver? Tudo bem, tudo bem! Até é bom haver esta discussão. Sempre houve, mas agora eu ‘tou a reacendê-la, ‘tás a ver? Mas é o que eu ‘tou a dizer: eu não sou fundamentalista, nunca fui fundamentalista disso! É apenas eu como consumidor, e para as pessoas verem que o rap ‘tá muito em alta graças à língua das escolas, eu já tou farto de dizer estas cenas e o caraças, mas é verdade, man!...
RMA: É porque as pessoas entendem o que os MC’s estão a dizer que se identificam mais com eles.
STK: É, tudo, man, tudo! E esta vaga de cantar em inglês não vem de agora! Houve grupos nos anos ‘70, em Portugal, e nos anos ‘80, que tentaram cantar em inglês!... E onde é que eles estão agora, man!... Ou mais tarde decidiram cantar em português, ou não ‘tão aí, man! ‘Tás a ver? Agora os The Gift fizeram uma música em português e foi muito bem aceite! ‘Tás a ver? E se calhar até é: «pá, por favor, continua assim»! ‘Tás a ver? É pá, tudo bem, quê, a música também é estética. A música é estética, e eu também tenho alguns instrumentais, ‘tás a ver? Ou se for no próximo álbum posso fazer: [rima com sílabas, sem palavras]. Yah, boy, isso é estética. E eu também tenho estética. Mas conteúdo, man, vamos falar de conteúdo. O que é que ‘tá lá dentro, ‘tás a ver? E o rap, pá, às vezes tem de ter coisas lá dentro que às vezes no inglês acabam muito por ser clichés, ‘tás a ver? A cena de: [a cantar] “I love you, my baby”, não sei quê. Pá, não sei, eu… não sei como te hei-de de explicar. Mas em Portugal, basicamente, a pergunta que eu faço é: diz-me um escritor que escreva em inglês que seja unanimemente considerado um grande escritor, cá em Portugal. Não vais dizer muitos nomes, man. Pá, não vais dizer um sequer. Vais dizer quê, David Fonseca? Diz-me, diz-me tu um.
RMA: (risos)
STK: Uma pessoa que escreva cá em inglês e que seja considerada unanimemente… pá, unanimemente não, mas considerada por muita gente um grande escritor e quando avalia os seus discos diz: «sim senhor, grande poema daquela música» … Há poucos, man.
RMA: Eu ‘tou-me a lembrar apenas de um, até ele já abandonou o inglês, ao que parece. O JP Simões dos Goshios Hotel.
STK: Pronto, pronto. E mesmo em português, ainda há, fogo, Sérgio Godinho, e mesmo o rapaz dos Ornados Violeta, o… como é que se chama, o Manuel…
RMA: … Manuel Cruz…
STK: …Cruz, sim, acho que sim, sim senhora. Mas… comparado com antigamente… acho que, havia mais, ah, as músicas eram mais ricas, mesmo na poesia. Eu gosto, eu gosto do Carlos Paião, man! Eu gosto das letras do Carlos Paião, as brincadeiras dele e o caraças, de rimas… Ary dos Santos, como já te falei na outra entrevista. ‘Tás a ver? E…
RMA: E tu não achas que, apesar de tudo, acaba por ter o mesmo peso, como dizem os Moonspell, cantar em inglês a cultura portuguesa ou cantar em português uma cultura que é americana?
STK: Então mas…
RMA: Que é o que o Hip Hop faz, no fundo.
STK: Então e qual é a cultura portuguesa dos Moonspell? Qual é a cultura portuguesa dos Moonspell?!...
RMA: Eu não ouço Moonspell, não sei. Mas o que eles dizem é que usam, ah, o Fernando Pessoa…
STK: Então, e eu uso a Amália, man!... (risos)
RMA: Falam dos mitos portugueses… etc.
STK: Então e eu uso o Mário Viega, o Almada Negreiros, eu uso isso tudo também, man!... Quer dizer… Yah, o rap é muito associado a ser americano, e o Rock é o quê? O Heavy Metal é o quê? O Heavy Metal vem de onde, man?...
RMA: Obviamente.
STK: E se formos mesmo às raízes vamos a África. Pronto. Yah, e agora?...
RMA: O que eu quero dizer é: fará ainda sentido discutir uma cultura portuguesa quando, ah, esta música nasce a uns milhares de quilómetros de distância para a esquerda… (para a esquerda se estivermos virados para o globo). Percebes o que eu quero dizer… em Nova Iorque, etc.
STK: Eu percebo o que é que ‘tás a dizer, mas eu, pá, não vou falar por todos, mas eu, eu faço um esforço para que a minha música tenha uma identidade de… não diria, pá, pronto, que pode ser portuguesa, mas minha, principalmente minha, de Chelas, minha, Samuel, uma identidade minha, ‘tás a ver? Mas que ao fim ao cabo acaba também por ter uma identidade portuguesa, man. ‘Tás a ver?
RMA: Claro que sim, eu acho que sim.
STK: Mas eu percebo o que é que estás a dizer. Claro que o Hip Hop é uma cena americana.
RMA: Estou-te a picar, basicamente.
STK: Não, não, mas é verdade. O Hip Hop é uma cena americana, mas nós esforçamo-nos mais para não ser americanos no aspecto do conteúdo, ter uma identidade, ‘tás a ver, do que… do que eles, ‘tás a ver? A desculpa que o gajo dos Moonspell diz é que «o inglês é a língua do Heavy Metal». Pá, pronto, isso diz tudo: enterrou-se. ‘Tá a dizer tudo, é o que eu ‘tou a dizer: é só preguiça. Porque para ele, ele só tem como referência aquela língua, ‘tás a ver? E o que eu digo é «eu não precisei de ouvir hip hop tuga pró fazer».
RMA: E é uma grande frase.
STK: ‘Tás a ver? Eu não precisei para ter como referência. Por isso é que eu digo que é preguiça, man! Porque é que tu não arriscas? Vais dizer…
RMA: Se calhar a diferença é essa: é que o Hip Hop admite como referências coisas que estão fora às vezes da sua cultura, não é? Mesmo nos Estados Unidos, o Hip Hop admitiu o Funk, admitiu o Soul, admitiu o Jazz como referência, não é? Tu vais aqui à nossa vizinha Espanha e de repente, eles estão a cruzar-se com música cigana, em França com a música árabe… e era naturalíssimo que em Portugal também fossemos ao encontro às nossas raízes, não é?
STK: … Claro, claro.
RMA: … E do Fado e da música portuguesa, etc. Muito bem, acho que… eu já tinha percebido o que tu tinhas querido dizer, para mim o assunto está enterrado. Agora, não deixa de ser curioso, e eu isso acho que até acaba por ser uma prova de… evolução. Aqui há uns anos assistia-se a muitas polémicas em Inglaterra, com… entre os Oasis e os Blur, as guerras de opiniões entre as bandas, etc.
STK: E porque é que, olha, por exemplo…
RMA: … e isso nunca aconteceu em Portugal! Parece que é uma paz podre, parece que toda a gente se dá bem, e não é verdade.
STK: … e porque é que…
RMA: Há opiniões divergentes, não é?
STK: Claro que sim! E podemos todos… e podemos todos conviver! Porque é que ninguém pergunta, nestes debates, porque é que ninguém vai ter com o Gombo, e diz: «Gombo, porque é que entraste no vídeo?». Pá, ele provavelmente diz: «Ah, ele tem aquela opinião, eu tenho a minha»! E podemos… “carry on, let’s get along”, ‘tás a ver?
RMA: Exactamente. (risos)
STK: Pá, podemos dar-nos todos bem, tudo bem! Pá, cantas em inglês, eu canto em português. Pá, mas… e se quiseres fazer uma música também coiso, pá, faz! ‘Tás a ver? E…
RMA: Aliás, até houve um bom exemplo de harmonia aqui há uns anos quando os Blind Zero gravaram com os Mind Da Gap, por exemplo …
STK: Mind Da Gap, Mind Da Gap! Exactamente, exactamente!
RMA: … e cada um se exprimiu na língua de eleição e a coisa até acabou por funcionar.
STK: Yah, yah.

Data: ??/12/2006

NOTA: Transcrito a partir de uma cassete.